sábado, 26 de dezembro de 2009

Quando o pai acusado não é (devidamente) ouvido.


(Texto resumido do livro Crianças no labirinto das acusações da Doutoranda em psicologia Marcia Ferreira Amendola – Ed. Jurua)

[...]observamos que Furniss (2002), ao apresentar esse problema, coloca-se em contradição, pois, como viemos discutindo, ao mesmo tempo em que o autor estimula os profissionais a presumirem pela ocorrência da violência, alerta para o fato de que o profissional pode agir de forma precipitada, por estar identificado com o abuso.

À luz dessas informações, é possível perceber que o autor sugere que o profissional presuma pela ocorrência do abuso sexual sem que se precipite em declarações infundadas. Apesar da diferença entre presunção e precipitação, entendemos que o profissional, ao presumir a ocorrência do abuso sem elementos outros que corroborem a acusação, pode estar agindo de forma precipitada, muitas vezes motivado pela urgência em responder à demanda judicial pela confirmação do abuso.

Nesse caso, ratifica-se a conexão “suspeito-culpado”, em que vigora a tendência dos profissionais de investigação (detetives, psiquiatras, psicólogos, entre outros) de “julgar os suspeitos como dissimulados” (KASSIN 7 GUDJONSSON, 2006, P. 77), podendo ver sinais ou “características associadas ao desempenho do papel de ‘culpado’” (p.76).


Fundamentada nesta suposição da culpa, verificamos que circula tautologicamente entre os profissionais de saúde e operadores do Direito uma lógica interna de acusação que transmite a seguinte proposição: se à mãe, naturalmente predisposta a cuidar da criança, cabe a verdade em relação à denúncia do abuso sexual, logo, ao pai, que nega a autoria deste abuso, resta a mentira. A conseqüência mais provável dessa lógica, fundamentada em paradigmas ou em “versões canônicas”, usando a expressão de Cárdenas (2000, p.1), é que o profissional se antecipe às evidências e se abstenha de ouvir o pai acusado (ou de ouvi-lo sem tendenciosidade), em um desrespeito aos valores que embasam a Declaração universal dos direitos Humanos, da qual extraímos:


Art.11, 1 – Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo coma lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.


Quando o psicólogo e/ou instituição que se encarrega de realizar uma avaliação de casos de suspeita de abuso sexual eximem-se de atender o suspeito, cerceando-lhe a palavra (e o direito de defesa), também extraem da análise parte que integra o contexto de vida da criança. Evita-se, assim, a dúvida, o questionamento, fundamental no trabalho do profissional, para se valorizar a presunção e o preconceito. Dessa forma perguntas deixarão de ser pensadas e problematizadas.


É insustentável pensar que, diante de tantas mudanças nos campos social, cultural, político, etc., o psicólogo ainda se veja como o detentor do poder-saber capaz de excluir a presença do acusado do processo de avaliação de abuso sexual, mesmo, e primordialmente, quando ele próprio é, além do principal acusado, o pai da criança. Trata-se, a nosso ver, de uma prática incompatível com os princípios éticos, ou seja, uma prática de exclusão e de suposição da culpa que desconsidera as implicações e os efeitos provocados na vida dos sujeito envolvidos em processos judiciais.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Os sintomas

(Texto resumido do livro Crianças no labirinto das acusações da Doutoranda em psicologia Marcia Ferreira Amendola – Ed. Jurua)

Estudos desenvolvidos por Haugaard e REpucci (1988), Gardner (1991), Green (1993), Ceci e Bruck (2002) e Sanderson (2005) alertam para o cuidado que se deve ter ao utilizar as informações disponíveis sobre as conseqüências do abuso sexual contra a criança, pois são fruto de uma ampla variedade de causas e contextos, nem todos relacionados com a ocorrência de abuso sexual. Os autores concluem que não há padrão de comportamento e sintomas específicos que ocorram em todas ou quase todas as crianças abusadas, tampouco existem indicadores que, seguramente, revelem a ausência de abuso sexual em crianças, sendo inviável e imprudente a generalização dos mesmos. Isso ocorre porque os indicadores comportamentais e de personalidade raramente diferenciam quando são decorrentes de traumas ocasionados pelo abuso sexual de quando são produzidos por diferentes tensores na vida de uma criança, ou mesmo de comportamentos esperados para crianças de determinadas faixas etárias, como afirmam Ceci e Bruck (2002, p.279):


“Embora muitos especialistas reivindiquem que os sintomas não sexuais, tais como distúrbios do sono, terror noturno, enurese noturna, ansiedade e relutância em ir à escola são consistentes com o abuso sexual, estes mesmos sintomas também são comumente encontrados entre muitas crianças de idade pré-escolar que não foram abusadas.”


Descontextualizado, o comportamento identificado nessas listas poderia servir à fabricação de identificadores falso-positivos, ou seja, o profissional poderia identificar sintomas de abuso sexual em crianças que não foram abusadas, emitindo uma falsa impressão de ocorrência desse tipo de violência.

Nesse contexto, Ceci e hembrooke (1998) criticam a atuação de psicólogos que, em resposta à demanda judicial para avaliação de crianças supostamente abusadas, têm apresentado seus dados fundamentados em listas de sintomas, observação de comportamento sexualizado e em protocolos padronizados de entrevistas semiestruturadas como se tais evidências fossem, cientificamente, comprovadas e pudessem, de forma inequívoca, corroborar ou contradizer uma acusação de abuso sexual.

Por extensão, concluímos que há uma tendência, entre os autores estudados, de se estabelecer uma análise entre dois aspectos: a ocorrência de abuso sexual e o surgimento de sintomas, como se ambos estivessem associados. Contudo, a correspondência entre esses elementos não implica que os mesmos apresentem uma relação de causalidade, ou seja, por não se tratar de uma doença, mas de um ato, o abuso sexual não poderia gerar sintomas. Em contrapartida, verificamos que o abuso sexual de crianças e os sintomas ou indicadores por elas apresentados estariam associados por meio de um terceiro aspecto que se encontraria interposto: o desenvolvimento de estresse.

Lipp (2000) esclarece que o estresse não é uma doença propriamente dita, mas um areação do organismo, com componentes físicos e psicológicos que podem surgir diante de situações ou muito difíceis ou muito excitantes, seja uma situação de abuso sexual ou outras situações potencialmente ansiogênicas, como o divórcio dos pais.

Se os indicadores descritos na literatura para abuso sexual são derivados do estresse vivenciado pela criança, logo, é plausível argüir que estes mesmos indicadores podem descrever o estresse vivenciado pela criança em contextos outros que também lhe impõem algum tipo de sofrimento e ansiedade, como no caso da separação dos pais.


Estando envolvida pelo clima de hostilidade instaurado entre os genitores desde o colapso do casamento, alguns autores alegam que a criança pode padecer de grande desconforto mental e físico, abrindo canal para a manifestação de diversos sintomas, especialmente os ligados à depressão, como: tristeza, preocupação, insônia, apatia e retraimento social, que tendem a ser empregados e/ou confundidos como conseqüências de abuso sexual. Nessas circunstâncias, as crianças tenderiam a apresentar preocupação com as brigas dos pais e com a forma de se relacionar com eles, assim como a se ressentir pelo afastamento daquele(s) a quem guardam sentimento de afeto (DE YOUNG, 1986; WALLERSTEIN & KELLY, 1998; FU i, CURATOLO & FRIEDRICH, 2000; BRITO, 2002b).


De acordo com Wallerstein e Kelly (1998), muitas crianças apresentam reações físicas ou as têm exacerbadas com a proximidade do horário de visita, ansiosas por rever o genitor que não detém a guarda, manifestações que desaparecem por ocasião da interação entre ambos. Outras por sua vez reagem com hostilidade, recusando-se a ir como genitor não-guardião, reflexo da acirrada rivalidade e/ou agressividade presente na relação entre os pais – que, não raro, disputam a atenção da criança com sedução ou ameaças – comportamento este equivocadamente interpretado como sintoma de medo decorrente de abuso sexual. Dessa forma, é possível deduzir que a sintomatologia apresentada pelas crianças deve ser observada em concomitância a um repertório de fatores, como o contexto social e familiar em que vivem.